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As Normas Voluntárias de Sustentabilidade e a cadeia de valor do Açaí

Rogerio Correa* e Dolores Brito**

1 de novembro de 2023

As preocupações com as mudanças climáticas têm provocado reações para a necessidade de sistemas de controle de emissões de gases de efeito estufa (GHG, da sigla em inglês greenhouse gases) e o aumento da desigualdade global tem gerado pressão por soluções que contemplem a busca de justiça climática nos processos produtivos, comércio de bens e nas cadeias produtivas, haja vista, as populações com menos riqueza serem mais afetadas por essas mudanças. Neste sentido, as autoridades regulatórias vêm sendo estimuladas a agir para que o arcabouço comercial internacional englobe tais questões.

O açaí é um produto florestal não madeireiro da Amazônia, é o fruto da palmeira do açaí ou açaizeiro. Tem ocorrência endêmica e nativa, principalmente nas margens dos rios, mas também é cultivado em fazendas e redutos desmatados e em sistemas agroflorestais (SAF). Produzido e consumido na região tem como seu principal produtor o estado do Pará. É exportado na forma de purê, polpa ou pó. Seus principais mercados são os Estados Unidos e a União Europeia.

Por ser um produto do extrativismo florestal e associado à sociobioeconomia da Amazônia fica exposto as questões relacionadas ao controle das emissões por árvores da chamada floresta em pé; do desmatamento e reflorestamento; também em questões trabalhistas, trabalho infantil, uso da peconha (método de coleta usados pelos extrativistas) e pela participação feminina nos processos produtivos familiares; pela correta distribuição de renda ao longo da cadeia; e pelas questões fitossanitárias, presença do barbeiro no meio dos açaizais e consequente transmissão do mal-de-chagas em produtos mal manipulados.

No Brasil, o bioma amazônico, o de produção do açaí, é também o de maior preocupação por outros países e o que tem maior impacto na contabilidade das emissões. Seja pela captura quando temos a floresta em pé, como pela emissão de carbono por efeito das queimadas ou quando do desmatamento, pela falta de captura dos GHG.

Em levantamento realizado em 2018 pela Plataforma Brasileira de Normas Voluntárias de Sustentabilidade estimou-se que as NVS podem afetar 44% do valor total das exportações brasileiras. Isso significa que cerca de US$100 bilhões das exportações do país estariam sujeitas a estas certificações. 

Para apoiar o conhecimento relacionado às NVS e seu impacto nas cadeias produtivas, o Inmetro em 2017, instituiu em sua estrutura a Plataforma Brasileira NVS que tem como objetivo ser uma interface de estudos sobre as certificações de sustentabilidade, as NVS. A Plataforma se articula em uma rede de parceiros que investiga, avalia e subsidia as partes interessadas sobre o que precisam saber para a melhor tomada de decisão, certificar-se ou não, qual a certificação mais adequada ao seu produto de interesse, porque se certificar, como, quando e onde fazer o processo. 

É comum um setor específico, como no caso da cadeia de valor do açaí, desejar desenvolver uma certificação própria. Neste momento, o principal conselho da plataforma é que no afã de se desenvolver uma nova NVS não se reinvente a roda. 

Ao se desenvolver um programa de certificação sustentável do tipo NVS para uma cadeia produtiva como a do açaí, algumas questões devem ser enfatizadas. Por exemplo, no aspecto ambiental, o programa deverá necessariamente levar em conta o respeito a preservação da floresta em pé, ao manejo de árvores e a proteção da biodiversidade. No que se refere as questões sociais, a preocupação com as crianças e adolescentes, a prevenção do trabalho infantil e a promoção ou previsão de políticas de equidade de gênero. No âmbito econômico, a correta remuneração e aplicação da legislação trabalhista aos trabalhadores extrativistas e distribuição justa de lucros ao longo da cadeia. Assim como, a previsão de metodologias de controle dos processos produtivos, segurança na produção e higiene sanitária.

Os requisitos mencionados fazem parte de vários programas de certificação. Levantamento recente feito pelo pesquisador do Inmetro, Kairo Fernandes Martins, em sua tese de doutorado, mencionou 28 certificações com ao menos um desses critérios de sustentabilidade e de sanidade. A fragmentação das certificações pode causar uma confusão na mensagem enviada, gerar dúvidas nos consumidores e provocar perdas financeiras aos pequenos produtores.

Como evitar tal tipo de dúvida e como a ferramenta da certificação poderá contribuir para valorização dos elos produtivos, respeito a natureza local, preservação da floresta, remuneração justa dos trabalhadores extrativistas e reconhecimento internacional da qualidade do produto? Seria possível que uma certificação única contemplasse todas essas questões? A resposta a essas perguntas não é simples nem única. Alguns produtores já utilizam uma ou mais de uma certificação e se beneficiam de várias maneiras na otimização e melhoria de seus processos, reconhecimento da qualidade do produto, abertura de mercados no exterior e melhores preços sinalizando que tais práticas são um ativo e funcionam.

É importante ressaltar que o processo de certificação nunca é imediato, demora minimamente um ano a três anos para se efetivar dependendo da complexidade da certificação e do nível de maturidade da unidade produtiva. Portanto, uma prática sensata na fase inicial deste processo é cumprir as etapas e procedimentos e se autodeclarar em conformidade às tais práticas até atingir o previsto na certificação para decidir sobre aderir a certificação em condições mais favoráveis.  Os consumidores de pequenos produtores autodeclarados em mercados locais não perderão nada com um produto não certificado oficialmente, mas produzido em conformidade com os critérios de uma norma certificável.

Em suma, o açaí certificado é de fato uma boa prática? A resposta a esta pergunta sempre será sim; entretanto, já vimos que para uma pequena unidade produtiva e no mercado local não é necessário estar certificado e uma autodeclaração de conformidade à norma já seria suficiente para atender as necessidades do consumidor. Desenvolver uma nova certificação para o açaí é uma boa ideia? Pode ser, mas é importante ter em mente o tempo necessário para que a certificação seja reconhecida pelo mercado e para fazer efeito, este tempo de maturação pode ser longo. Usar ou adaptar uma certificação existente, com certeza, trará resultados mais imediatos e poderá cumprir os objetivos previstos em uma nova certificação. 

Finalmente, as NVS garantem a sustentabilidade da produção, proteção do meio ambiente, das regras de trabalho e gênero e distribuição de lucro e correta remuneração ao longo da cadeia? Não garantem, mas podem ser usadas como parâmetro de aferição por autoridades, distribuidores e consumidores preocupados com esses valores e podem ser um real ativo no sentido correto do atingimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável.

Rogerio Correa* Engenheiro Químico, doutor e mestre em Tecnologia de Processos Químicos e Bioquímicos (Engenharia Química) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Servidor público, da carreira de pesquisador-tecnologista em metrologia e qualidade, do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), onde atua há 21 anos exercendo suas atividades na área de Articulação Internacional. Atualmente é co-responsável pela Plataforma Brasileira de Normas Voluntárias de Sustentabilidade.

 

Dolores Brito** é psicóloga, formada pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), doutoranda em Desenvolvimento Internacional na Escola de Estudos Globais da Universidade de Sussex e mestre em administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE/FGV. Servidora pública, da carreira de analista executiva em metrologia e qualidade, do Instituto de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), onde atua há 15 anos, tendo exercido suas atividades nas áreas de Gestão Corporativa e Articulação Internacional. Atualmente é co-responsável pela Plataforma Brasileira de Normas Voluntárias de Sustentabilidade.