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Gênero e direitos humanos na cadeia do açaí

Da invisibilização do trabalho feminino no campo e florestas à luta pelo reconhecimento do papel da mulher na estruturação de cadeias de valor: o caso do açaí.

28 de junho de 2023

O avanço da pauta de gênero no debate público é uma das principais conquistas femininas dos últimos anos. Se no âmbito do trabalho realizado em ambiente urbano e na conquista de políticas públicas voltadas à proteção de suas integridades há o que se comemorar, ainda que avanços precisem ocorrer, é no ambiente rural que reside os principais desafios contemporâneos da agenda de gênero. Pelo menos é isso que apontou pesquisas desenvolvidas na Amazônia consultadas pelo boletim Diálogos Pró-Açaí.

De acordo com as pesquisadoras Daniele Barbosa Furtado e Juliane Tavares Pinheiro, da Universidade Federal do Pará (UFPA), os estudos realizados sobre gênero e as conquistas adquiridas no decorrer da história ganharam significativo espaço acadêmico e é cada vez mais expressivo o número de livros, artigos, dissertações, monografias e outros que buscam evidenciar esta pauta e as principais dificuldades ainda enfrentadas por essas mulheres que a cada dia lutam incessantemente para ter seu verdadeiro valor reconhecido no espaço em que estão inseridas.

Os pesquisadores Renato dos Prazeres, Monique Medeiros e Aldrin Benjamim, destacam, em artigo publicado pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), que as mulheres agricultoras, além da responsabilidade quase que exclusiva no trabalho reprodutivo, associado às funções domésticas e maternas, também realizam trabalho produtivos fortemente ligados à agricultura. Segundo eles, para entender as relações de trabalho nesse contexto, é preciso compreender que as mulheres são protagonistas no trabalho nas roças, artesanato, extrativismo, criação de animais, cultivo de plantas medicinais, entre outros.

No contexto amazônico, os autores afirmam que a relação de gênero em uma comunidade ribeirinha é marcada pela cultura do patriarcado. Nesse tipo de cultura, o trabalho praticado pelo gênero feminino é reconhecido como “ajuda” e pejorativamente visto como “coisinha leve” ou “coisinha pouca”, marcado pela “invisibilidade” diante do gênero masculino, que ocupa o centro da “visibilidade” e das tomadas de decisões no estabelecimento.

Em estudos realizados na Ilha de Guajará de Baixo, no município de Cametá, no Pará, foram identificadas seis etapas na produção extrativista do açaí: limpeza do terreno (roçagem), manejo das espécies vegetais, apanha, debulha, carrega e comercialização. De acordo com a pesquisa, a distribuição dos afazeres por cada membro familiar nessas etapas é planejada pelo chefe da família ou pela necessidade de momento. Além do mais, o patriarca, “chefe da família”, também detém o controle da unidade de produção na contratação de trabalhadores, na compra de insumos, nos contatos com os compradores e na administração em geral do estabelecimento. Os pesquisadores identificaram em cada etapa, por meio de entrevistas e observação em campo, como é a participação feminina em cada uma delas. 

(1) Limpeza da área: nas proximidades das casas, a limpeza do terreno é praticada com maior frequência pelas mulheres que manuseiam o terçado e a enxada para esta finalidade; 

(2) Manejo das espécies: configura-se como a etapa de realização de desbaste das touceiras e eliminação de árvores indesejadas. Terçados e machados são as principais ferramentas utilizadas no manejo. Como esta etapa exige maior esforço físico, as mulheres participam eventualmente, como revela a fala de uma entrevistada: “Depois que a gente roça, a gente vai cortar as açaizeiras mais altas, pra desabafar mais o açaizal e dar espaço para as novas [...]. Eu vou lá, carrego o palmito do mato, mas cortar, meu marido fala que é perigoso. E cansa mesmo, aí é ele com os filhos que corta [...]”;

(3) Apanha: realizada com a captura do cacho da copa do açaizeiro, o qual é trazido para a parte terrestre. Os apanhadores são conhecidos como peconheiros. As mulheres mais idosas afirmam que sempre praticaram a apanha do açaí com a utilização da peconha, porém essa atividade se torna bastante cansativa.

(4) Debulha: nesse procedimento, de forma manual, a debulhadora realiza a retirada do fruto dos cachos para uma lona no chão e em seguida são inseridos em paneiros confeccionados pelas mulheres, com formato e tecelagem artesanal. Para perdurar essa arte, as mulheres costumam ensinar aos filhos o passo a passo dessa técnica 

(5) Carrega: é o ato de carregar o paneiro com açaí em trajeto, feito a pé, por dentro do açaizal, as mulheres colocam um paneiro por vez no ombro ou na cabeça até o destino. Um paneiro cheio de açaí pesa, em média, 15 kg, fator este que dificulta às mulheres realizarem trajetos longos.

(7) Comercialização: compreende a etapa final, a qual se encerra com a venda do fruto. Na Ilha de Guajará de Baixo, as mulheres adotam dois fluxos de comercialização, via intermediários que se deslocam diariamente às residências para a compra da produção e/ou às feiras das vilas de Porto Grande e Carapajó.

Cabe salientar que, conforme as etapas produtivas do açaí exigem maior esforço físico, como o manejo do açaizal e a limpeza do terreno, a frequência relativa de participação das mulheres diminui. As entrevistadas alegam que os maridos poucas vezes as permitem realizar esse trabalho mais “pesado”.

De modo semelhante, Vieira, Rosa, Modesto e Santos (2008) também verificaram esta situação ao estudarem a relação entre gênero e sistema agroflorestal (SAF), no município de Igarapé Açu (PA). Os autores constataram que, apesar das mulheres desempenharem várias atividades em SAF, elas consideram pouca a participação nos trabalhos produtivos “pesados”.

 

As desigualdades de gênero no campo

A rede setorial multiatores Diálogos Pró-Açaí desenvolve ações para promover os direitos humanos na cadeia de valor do açaí, inclusive o debate sobre a equidade de gênero. Segundo Ana Cristina Nobre da Silva, socióloga, especialista em Educação em Direitos Humanos e consultora da GIZ que acompanha as ações do grupo, a participação das mulheres no extrativismo e agricultura contribui significativamente para a segurança alimentar da família e, apesar da invisibilidade, elas contribuem em todas as etapas da produção. “Nós encontramos a contribuição efetiva das mulheres com diferentes níveis de participação, mas o que chama a atenção é que, apesar disso, o cenário aponta que as mulheres possuem acesso limitado aos recursos obtidos pelo casal. A renda, gerada em geral, fica com o homem e o poder de decisão sobre como usá-la fica limitado ao homem e acaba tendo uma manutenção de uma relação de dependência. Então, eu acho que a gente está falando de um cenário rural. Qual é ainda muito marcado pelo machismo, pelo patriarcado”, afirmou.

Para Ana Cristina, quando estamos falando sobre desigualdade de gênero no campo, estamos falando da manutenção da divisão desigual das tarefas do lar, por exemplo, e a subserviência da mulher ao homem.  “O que também é invisibilizar o trabalho delas, tanto nas atividades produtivas quanto na economia doméstica. (...) Para mudar isso é preciso reconhecer que há, sim, essa desigualdade e uma discriminação estrutural, para olhar as diferentes camadas dessas questões”, destaca.

Um dos caminhos, descreve Ana, é apoiar a organização das mulheres em associações exclusivamente femininas. Assim, as mulheres vão exercitar a liderança e a participação na gestão, na tomada de decisão. “Isso pode ocorrer em alguns territórios, em alguns espaços onde exista essa possibilidade”, conta. “Embora eu compreenda que os desafios são de natureza estrutural, isso não quer dizer que a situação seja imutável, não seja passível de ser resolvida. Por isso é preciso investir em ações estratégicas para fomentar a igualdade”, conclui a pesquisadora.

 Para ampliar o debate sobre as diretrizes e boas práticas na cadeia do açaí sustentável com foco na agenda de direitos humanos, a rede Diálogos Pró-Açaí realizou webinário com atores do setor. O encontro buscou fomentar a adoção de boas práticas na cadeira do fruto, como  uma garantia mínima de produção economicamente viável e  socioambientalmente correta.

De acordo com Renata Guerreiro, coordenadora de projetos do Instituto Terroá e membro da secretaria executiva da iniciativa, o evento compõe uma das ações estratégicas definidas pela rede. “Nosso objetivo é gerar reflexões sobre parâmetros que envolvem o conceito do emprego rural decente, levantando pontos relacionados às condições de trabalho saudáveis e seguras, como também o cumprimento de regulamentos nacionais e internacionais”, destacou.

Para Talía Bonfante, Assessora Técnica Ecoconsult da GIZ, é fundamental olhar para os aspectos sociais que envolvem a cadeia produtiva do açaí. “A gente não pode falar de sustentabilidade sem olhar para os direitos fundamentais de quem está na ponta operando. Nossa proposta com essa atividade é gerar capacidades e entender os limites sobre tradicionalidade, trabalho infantil, trabalho forçado, violação de direitos e afins. É um espaço para sensibilizar e desenvolver ações sobre a temática”, contou.

 

Diálogos Pró-Açaí

A iniciativa Diálogos Pró-Açaí é uma rede setorial multiatores criada em 2018 com  o propósito de promover um debate qualificado em prol do fortalecimento e  da sustentabilidade desta importante cadeia da sociobiodiversidade.  Atualmente, a iniciativa conta com 70 organizações parceiras e envolve mais  de 100 representantes de setores governamentais, empresas, cooperativas e  associações, instituições financeiras, incubadoras/aceleradoras, redes  nacionais multissetoriais, sistemas de certificação, organizações do terceiro  setor, universidades, centros de pesquisa e de assistência técnica.

A rede setorial multiatores Diálogos Pró-Açaí foi criada em 2018 para promover debate qualificado em prol do fortalecimento e da sustentabilidade desta importante cadeia da sociobiodiversidade. A iniciativa se originou do projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável, uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), contando com o apoio do Instituto Terroá. Atualmente, o projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor apoia a iniciativa. 

 

Para mais informações, consulte:

http://www.eng2016.agb.org.br/resources/anais/7/1467483916_ARQUIVO_trabalhoparaenviarproeng.pdf

https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/view/11492/7928

https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/9008/7511