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"O maior mercado do açaí chama-se Pará. (...) Porque você tem uma população consumindo açaí diariamente"

Leia entrevista com Fernanda Stefani, CEO e Co-Founder da 100% Amazônia

22 de março de 2023

Nesta edição, nosso boletim informativo apresenta entrevista com Fernanda C. Stefani que nos conta sua experiência à frente da 100% Amazônia, empresa especializada em produtos florestais não madeireiros renováveis e no desenvolvimento da cadeia de suprimentos de ingredientes exclusivos para as indústrias de alimentos, bebidas e cosméticos. O açaí é um dos produtos carro-chefe da organização.

A empresa possui certificação orgânica da União Européia, EUA e Brasil. Em 2015, conquistou a certificação ISO 9001 para gestão da qualidade, garantindo processos padronizados e mais eficientes. Em 2018, tornou-se referência em empreendedorismo social no Brasil, conquistando a Certificação B Corp e atualmente exporta para 67 países.

Fernanda é CEO e co-fundadora de uma empresa B de impacto socioambiental, a 100% Amazônia. Economista com passagens pela FEA-USP e pela Universidade de Viena, direcionou sua carreira para o desenvolvimento de projetos internacionais e cadeias sustentáveis na Amazônia. Especialista em inteligência comercial com mais de 15 anos de experiência na cadeia do açaí e outros bioingredientes amazônicos, Fernanda dissemina conhecimento para capacitar produtores e comunidades, e ampliar a consciência e fomentar novas maneiras de fazer negócio na Amazônia mantendo a floresta em pé e viva.

Em 2020, foi reconhecida pela Revista Época Negócios como uma das 100 brasileiras inovadoras pelo clima. Em 2021 foi reconhecida como Empreendedora do Ano pela EY, na categoria Impacto Socioambiental, em cerimônia no canal Forbes Brasil. É Winning Women Fellow, sendo pessoalmente acompanhada no programa por: Luiza Helena Trajano (Magalu), Gabriela Baumgart (Grupo Baumgart) e Bel Humberg (Conselheira e Empreendedora Endeavor) Atualmente é membro dos Conselhos Consultivos do Sistema B e da Aliança pela Restauração da Amazônia.

DPA: Qual o papel da empresa na cadeia do açaí? 

Fernanda: Agora em 2023 inauguramos uma agroindústria que irá processar cerca de 28 espécies botânicas amazônicas incluindo o açai de forma totalmente robotizada, sendo que nosso foco continuará sempre no mercado internacional pois esse mercado é bastante sensível quanto à originação e qualidade dos produtos. É a única fábrica 4.0 a processar a produção da sociobiodiversidade amazônica. Já exportamos nosso portfólio para mais de 67 países, desde Austrália até Madagascar. Atendemos todos os continentes com nossas exportações.

DPA: Com quais atores da cadeia vocês se relacionam mais, pensando na dinâmica de funcionamento de vocês? E de quais territórios?

Fernanda: A partir da agroindústria, trabalhamos com 38 comunidades, sendo divididas em cooperativas, grupos de produtores, agricultura familiar e associações. Aquilo que não conseguimos produzir na nossa fábrica, fazemos terceirização com uma rede de outras indústrias que já foram homologadas por nós e que também acompanhamos a produção.

Em relação aos territórios, temos produtos saindo do Apuí e Lábrea e Maués no Amazonas. No Pará, estamos em 8 municípios, quase todos no entorno da fábrica. Em Rondônia, estamos em terra indígena. 

DPA: O que você leva em consideração para estabelecer parcerias comerciais com seus fornecedores de insumos?

Fernanda: A produção para o mercado externo tem toda uma dinâmica diferenciada, é necessário ter uma série de certificações, de segurança alimentar e até de bioterrorismo. Além disso, quando você trabalha num regime industrial, você tem algumas variáveis que precisam ser otimizadas. Não são muitas fábricas que possuem essas certificações hoje em dia. 

DPA: Dentre os fornecedores, qual a participação da agricultura familiar? Uma estimativa.

Fernanda: No nosso caso, praticamente 90%.

DPA: E quantas cooperativas, associações, vocês têm relação? Compram produtos? 

Fernanda: A gente trabalha com 38 grupos produtores, entre cooperativas, associações e comunidades. 

DPA: Há quanto tempo você atua no ramo?

Fernanda: Desde 2005. Sou uma das pioneiras. Em 2006 foi a nossa primeira exportação. Já são 18 anos, e tudo começou com açaí.  As outras espécies começaram a vir a partir de 2009. 

DPA: Quais os principais problemas ou demandas relacionadas à questão sanitária? Existe algum problema sobre a qualidade do açaí? 

Fernanda: Uma questão mais cultural mesmo do produtor é ele entender que quando se tem um açaí de boa qualidade, com processo produtivo bem organizado, com boas práticas agrícolas, o produto rende mais, ele vale mais. Às vezes, o que falta no início da cadeia é ele ter um tratamento adequado, então a educação é essencial, de boas práticas dentro do campo.

DPA: Nesse sentido, vocês desenvolvem algum treinamento, algum programa para refletir sobre qualidade? 

Fernanda: Sim, um bom exemplo foi um material que desenvolvemos de boas práticas agrícolas junto com a OXFAM que a gente distribuiu para a região do Baixo Tocantins.

DPA: Quais os principais problemas ou demandas relacionadas a questões ambientais? E as questões sociais?

Fernanda: Com a entrada de grandes fábricas que fomentam apenas a compra de açaí, a gente percebe uma tendência a suprimir a mata nativa para achar mais espaço para o plantio do açaí. 

A biodiversidade é consequentemente suprimida. Áreas que deveriam ter de 400 a 600 árvores por hectare, chegam a ter mais de mil açaizeiros. A gente chama isso de processo de açaização, que é de monocultura, mesmo sendo de uma espécie nativa. Também chamados de desmatamento verde. 

E por outro lado, você fragiliza essas comunidades, porque elas passam a depender de uma renda de apenas um produto. Pouca gente entende, porque olha só no curto prazo: se o preço está subindo, então todo mundo começa a plantar açaí. Mas imagina o dia que o Vietnã resolve plantar açaí? Imagina se a Malásia começa a plantar açaí? Imagina se o Peru resolve plantar açaí? Eles tem uma infraestrutura muito mais competitiva que a nossa e seriam competidores ferrenhos. Então, do ponto de vista do curto prazo, isto é bastante perigoso para as comunidades, porque a grande vantagem delas morarem na Amazônia é a biodiversidade, mas quando elas entram para um modelo de monocultura ou monocultivo, como tem acontecido, elas se fragilizam. 

Temos muito o que aprender. Existe uma possibilidade de plantio que pode ser uma saída, mas tudo o que é monocultura dentro da Amazônia não faz muito sentido para mim. Aliás, monocultura não faz sentido para lugar nenhum. Eu acredito mais nas agriculturas regenerativas, na agrofloresta, aí sim, agrofloresta você tem outras coisas também. 

DPA: Tem alguma experiência grande de agrofloresta para cultivo de açaí ou manejo? 

Fernanda: A CAMTA (Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu) é a única que tem a floresta dentro do modelo de negócios deles. Agora existe também a curva do aprendizado para as pessoas implantarem agrofloresta. A gente tem que prestar mais atenção na natureza, e não aquilo que a gente quer plantar por uma questão puramente econômica. Eu tenho que olhar como a natureza se comporta. Mas isso não é só no açaí. Isso é de maneira geral, quando a gente fala em projetos agropecuários.

DPA: Quais as principais dificuldades de articulação, coordenação e comunicação na cadeia para resolver esses problemas e demandas? 

Fernanda: 

Primeiro, acho que deveríamos conhecer em detalhes a cadeia produtiva. Fazer mesmo um estudo profundo de todas as partes interessadas.

Segundo, realmente buscar uma colaboração destas partes. Hoje eu percebo que as partes não conversam, e um fortalecimento é importante. Porque daqui a pouco, outros países terão o açaí mais competitivo que nós.

Por isso,  eu sempre digo que precisamos ter um projeto educativo. Educação de maneira geral, para os negócios da floresta. Acho que o diálogo devia ser diálogos amazônicos, pois se a gente dá muito valor para o açaí, o resto fica descoberto. Deveríamos mudar o nome. Em vez de diálogos do açaí, diálogos da Floresta.

Outra dificuldade importante é o tamanho da nossa região e a concentração de fábricas nas mesmas regiões. Isso causa uma inflação do preço do açaí em algumas áreas e outras, por não terem demanda forte, acabam vendendo a fruta a preços muito baixos. Pela distância dos centros de consumo.

E por fim, vale lembrar que os participantes do início da cadeia, sempre são os mais fragilizados, os que mais trabalham mas também os que menos ganham. Por isso, vale uma reflexão: como a gente diminui essa cadeia para ter uma divisão dos lucros mais equânime? 

DPA: E o que mudou na vida dessas populações com a alta demanda por açaí?

Fernanda: Do meu ponto de vista, o aumento do preço do açaí não se traduziu em melhoria de vida para a população ribeirinha de maneira geral. A melhoria de vida é obtida através de uma série de fatores, tais como boas escolas, bom sistema de saúde, uma maior participação da comunidade no sistema político local, etc. Ainda vejo que os maiores ganhadores com o açaí estão fora das áreas de coleta. Estão também fora da Amazônia.

Por isso, quando a gente ouve muitas falas do tipo: O açaí está dando dinheiro, o açaí é o ouro negro, eu sempre me pergunto: Para quem? O dinheiro, de fato, fica mais concentrado no final da cadeia. Então, o que de fato nós paraenses estamos ganhando com tudo isso? 

Precisamos de uma reflexão sobre como essa cadeia está sendo justa ou não. Porque, na verdade, aquela pessoa que sobe no açaizeiro, aquela pessoa que planta o açaizeiro, ela dá o início a uma cadeia produtiva que não é justa. 

DPA: Quais as diferenças entre o mercado interno e o externo?

Fernanda: O maior mercado do açaí chama-se Pará. Esse é o maior mercado, de longe. Porque você tem uma população consumindo açaí diariamente como arroz e feijão. Depois do Pará, aí temos o mercado brasileiro. Só depois é que temos o mercado Internacional. Açaí é uma cultura alimentar, e você não muda cultura. Se eu for vender arroz para a Ásia seria super fácil, porque os asiáticos têm um costume de comer arroz que data há mais de 10 mil anos. 

O mercado externo vê o açaí como uma superfruta. E por isso ele deve ser consumido como um produto saudável. Os distribuidores de açaí de fora do Brasil querem ganhar dinheiro vendendo o sorvetinho de açaí, também chamado de açaí mix ou sorbet de açaí. Não é a mesma coisa. 

DPA: E quais as diferenças considerando qualidade, sustentabilidade e exigências socioambientais?

Fernanda: A maioria dos distribuidores do mercado brasileiro tradicional está buscando preço. Não tem nenhuma preocupação socioambiental. Isso gera uma concorrência desleal entre os fornecedores do purée pronto, e muito açaí de baixa qualidade alcança esse mercado.

O mercado externo leva uma fatia muito pequena do açai, justamente pelo risco de exportação e pela falta de transparência atual do mercado. Para este mercado, qualidade e sustentabilidade tem preponderância.